Dani
Costa – O País (ao) - Entrevista
Professor
titular na Universidade Agostinho Neto, Paulo de Carvalho é co-autor do livro
‘O que é racismo?’ que vai ser lançado nos próximos dias, em Luanda. O assunto é
considerado por muitos como tabu. O sociólogo aceitou falar a O PAÍS sobre o
tema, com ideias próprias, como, por exemplo, acreditar que a ‘mestiçagem é o
futuro da humanidade’. De qualquer modo, o nosso entrevistado pensa que a
questão do racismo no país precisa de ser debatida sem preconceito.
É
co-autor do livro ‘O que é racismo’. Diga-nos, então: o que é o racismo?
A
“raça” é uma coisa inventada pelos seres humanos, para demonstrar que uns são
superiores a outros e que a algumas das diferenças biológicas perceptíveis a
olho nu corresponderiam diferenças comportamentais, diferenças no coeficiente
de inteligência e diferenças em termos de capacidades e competências. Há muito
a ciência demonstrou que tudo isto é farsa, pois não condiz com a realidade.
Os
bebés não notam as supostas diferenças raciais, o que significa que elas são
aprendidas socialmente. E olhe que eu até já lidei com pessoas adultas de
vários países, que não notam diferenças na tonalidade da pele das pessoas; só
se apercebem disso quando se lhes chama à atenção para o facto. O racismo
pressupõe uma suposta hierarquia nessa coisa a que se chama “raça” e essa
hierarquia é muito elementar, pois considera que “o que é nosso é melhor”.
O
racismo pressupõe preconceito e pressupõe normalmente discriminação com base
nesse critério de diferenciação. Nada disso é natural, tudo isso é criação
humana. E muitas vezes nós alinhamos nessas coisas, sem nos apercebermos que
estamos realmente a fazer o jogo dos de fora, daqueles que não nos querem ver
unidos, que nos querem ver desunidos.
O
que é que pretendem com esta publicação?
O
livro enquadra-se numa colecção, que é dirigida pelo sociólogo moçambicano
Carlos Serra (da Universidade Eduardo Mondlane), intitulada “Cadernos de
Ciências Sociais”, que já tem vários números publicados. O mais velho Carlos
Serra conseguiu reunir seis dezenas de investigadores sociais dos quatro cantos
do mundo (de Tóquio e Dili a Maputo e de Ottawa e Rio de Janeiro a Luanda).
Este é o primeiro livro da colecção com a participação de um angolano, mas
estão já no prelo outros livros desta série sendo coautores o sociólogo Víctor
Kajibanga e o linguista José Pedro, também angolanos. Se calhar, vou propor a
inclusão de mais alguns angolanos no grupo. A intenção é cada livro ter pelo
menos três autores. É um projecto muito sério, em que cada autor tem autonomia
para escrever o que considera mais oportuno e mais válido. A minha próxima
participação será no livro “O que é Sociologia”, que vai ter quatro autores e
deverá estar entregue na tipografia antes do final do ano.
E
no caso concreto deste livro, qual foi a intenção dos autores com a sua
publicação?
Eu
inscrevi-me para este tema, porque considero ser um dos temas tabu em Angola,
que precisa de ser desmistificado, desconstruído e esclarecido. Mas de um modo
geral, penso que para os quatro autores do livro a intenção terá sido trazer a
público, antes de mais, uma abordagem académica acerca do racismo, que é
apresentada de forma a ser percebida por todos.
Os
autores são duas brasileiras, um português e um angolano, com formação em
quatro áreas distintas: antropologia, letras, psicologia social e sociologia.
Todos nós trazemos elementos teóricos, mas também casos práticos e vivências
próprias. Portanto, o livro é útil para estudantes e profissionais das ciências
sociais, para políticos, investigadores e público em geral. As pessoas comuns
devem ler o livro e perceber que, quando olhamos para o outro (qualquer que ele
seja), devemos perceber as semelhanças que temos com ele e não as diferenças
físicas ou culturais, como muitas vezes fazemos.
Em
Angola existe ou não racismo?
É
difícil responder taxativamente a essa pergunta, numa breve entrevista. O meu
texto, no livro, intitula-se “Racismo enquanto teoria e prática social”. Incluo
aí um item intitulado “Há racismo em Angola?”, cuja leitura aconselho. Mas vou
tentar responder à pergunta, abordando dois aspectos distintos. Primeiro, se me
pergunta se há casos de discriminação racial em Angola, respondo positivamente:
há-os, sim. Aliás, não era de esperar outra coisa, pois saímos de um longo
período colonial há muito pouco tempo, para se ultrapassarem as sequelas daí
resultantes – incluindo as que têm a ver com aquilo que se designa
habitualmente por “raça”. Mas se a pergunta é se existe racismo
institucionalizado em Angola, a resposta só pode ser negativa.
Havia,
sim, no período colonial, mas a proclamação da independência trouxe uma série
de coisas boas, sendo uma delas a eliminação do racismo institucionalizado.
Hoje, as pessoas têm acesso ao ensino superior (por exemplo), independentemente
da cor da pele – coisa que não ocorria no período colonial. Hoje, não é a cor
da pele que determina quem chega ao topo de qualquer carreira profissional em
Angola.
E
além disso, é preciso reconhecer que (ao contrário do que sucede com alguns
grupos étnicos) não há reuniões de grupos raciais como tais, para se traçarem
estratégias de actuação comum. Portanto, acredito que a fase do racismo
institucional esteja ultrapassada em Angola, o mesmo não se podendo dizer de
manifestações que encerram discriminação racial, que existem de forma isolada,
não de forma organizada. As pessoas comuns (e até alguns jornalistas e
políticos) confundem estas duas perspectivas, que são distintas e, por isso,
não devem ser consideradas no mesmo patamar. Uma coisa é o racismo
institucional (mais global, mais abrangente), outra são actos de discriminação
racial (mais isolados, menos abrangentes e com menor percepção social).
Distinga
os tipos de racismo que existem em Angola?
Há,
realmente, vários tipos de racismo – desde aquele que encerra apenas
preconceito, àquele que encerra discriminação e violência massiva. Em Angola,
temos uma série de racismos aprendidos socialmente, seja na família, seja no
grupo étnico, seja nos grupos de amigos, seja ainda através de alguns meios de
comunicação social cujo objectivo é criar a divisão no seio dos angolanos.
Pode
dizer-se que não há em Angola racismo que envolva violência massiva e
praticamente não existem actos de racismo com violência. O racismo mais comum
pelo mundo é o que pressupõe a supremacia dos mais claros, como se o dia
tivesse supremacia sobre a noite e como se ambos não se complementassem apenas.
Por cá existe este racismo tradicional, que foi herdado do período colonial.
Mas
existem também outras manifestações de racismo, que pressupõem que à supremacia
demográfica de uns deva corresponder a sua hegemonia e o afastamento dos grupos
“raciais” menos expressivos. Um e outro racismo consideram elevada dose de
egoísmo, pois em cada um dos casos se pega nalgumas das diferenças somáticas
perceptíveis para tirar algum benefício. Esta é a questão fulcral a considerar:
tal como sucede com a utilização da diferenciação étnica, também se utilizam
supostas diferenças “raciais” de forma mais ou menos subtil, para procurar
tirar vantagem económica, social ou política. Temos, pois, de estar atentos a
isso.
O
racismo ainda é considerado tabu no seio da sociedade ou tem sido visto de
maneira apaixonada?
É
um dos tabus presentes na nossa sociedade. Aliás, a nossa sociedade é perene em tabus. Posso
apresentar um outro caso: eu falo de sexo nas minhas aulas, pois considero ser
preciso ultrapassar tabus, quanto mais não seja, para sermos mais felizes. Pois
em tempos alguém se foi queixar à direcção da faculdade depois de ter reprovado
numa minha disciplina, dizendo que eu falo de sexo nas aulas, como se isso não
fosse a coisa mais comum, como se não se devesse falar de sexo na escola, desde
a adolescência. Claro que, na minha geração, fomos todos educados com base em
todos esses tabus. Acho que o segredo está em sabermos ultrapassá-los. E para
ultrapassarmos os tabus, temos de os abordar com seriedade e de forma
desapaixonada. Não há outra via. Calar é manter os tabus, é deixar perpetuar a
sua existência social nefasta.
Que
outros tabus pode enumerar?
Para
além da questão racial, já referi o sexo enquanto elemento que faz parte da
natureza humana. Sem sexo não existiríamos, sem sexo não seríamos tão felizes
quanto somos. Então como é possível não podermos abordar um assunto que faz
parte da nossa própria natureza? Mas atenção, que não está certo aquilo que vi
em tempos num programa da TPA, em que um suposto “especialista” abordava
detalhes e dizia impropérios e asneiras em público, ao ponto de a apresentadora
do programa ficar encabulada. Isso não tem nada a ver com abordagem séria de
assuntos que são tabu.
É
preciso que haja conhecimento de facto e que haja o mínimo de sensibilidade,
para não ferirmos susceptibilidades. Um outro dos grandes tabus tem a ver com a
questão étnica. Por que razão não se pode dizer que temos por cá elites de
vários grupos étnicos que se juntam e traçam estratégias? Por que razão não se
pode dizer que há empresários e dirigentes que se rodeiam maioritariamente de
pessoas do seu grupo étnico? Não creio que essa seja actuação correcta, por
isso mesmo considero ser necessário abordar este tipo de matéria, até para que
possamos ultrapassar isso para garantirmos a harmonia social e para que
possamos dar passos mais significativos rumo à consolidação da nação angolana.
Voltando
ao nosso tema, acredita que o conturbado processo de descolonização de Angola,
provocado pelos portugueses, terá pesado de alguma forma para a existência de
alguns resquícios de racismo no país?
Claro
que isso ocorreu, mas naquela altura. A forma como decorreu o processo de
descolonização (que foi um processo conturbado, temos de assumir) foi
prejudicial para aquele período, mas do ponto de vista da racialização até não
terá sido tão prejudicial para o futuro.
A
esmagadora maioria dos colonizadores e seus descendentes abandonou Angola, de
modo que terão desaparecido muitos dos focos de racismo tradicional. Os
“brancos” que ficaram são maioritariamente pessoas que estavam contra a
colonização, pessoas até que lutaram contra a colonização, com armas e com
canetas na mão. Portanto, o processo de descolonização em Angola e em
Moçambique não fez perpetuar a manutenção do poder por parte de quem o detinha
antes. Essa possibilidade existia, mas felizmente não ocorreu.
Se
tivesse ocorrido, aí sim, poderia continuar a haver derramamento de sangue com
base na racialização, até que a situação mudasse e atingisse o patamar que tem
hoje. Hoje, estamos felizmente libertos desse mal que antes existia
institucionalmente.
Quais
são os sectores da sociedade angolana onde se assistem mais actos de racismo e
como é que ele se tem manifestado?
O
que me parece que haja mais, hoje, em Angola são actos de racismo subtil, que
visam algum benefício – emocional, social, económico ou político. A “raça” é
mais utilizada de forma instrumental, como um dos elementos que se utiliza para
afastar “a concorrência”.
Estou
lembrado, por exemplo, de um antigo colega que falava permanentemente contra
mulatos e brancos, mas quando estava diante de um mestiço dizia: “Até os meus
filhos são mestiços…” Enfim, esta utilização instrumental da “raça” é de uma
tal desonestidade intelectual, que demonstra a toda a gente que o seu autor
apenas quer beneficiar afastando eventuais concorrentes.
Mas
ultimamente, temos de reconhecer que a crise económica internacional está a
trazer para Angola problemas do foro laboral que, ou têm, ou se supõe terem
base racial. Não generalizemos, mas temos de reconhecer que há empresas e
organizações estrangeiras ou de âmbito internacional em que existe claramente
alguma discriminação contra angolanos.
Quando
se fala em racismo estaremos apenas cingidos à questão rácica ou há outros
elementos que devem ser considerados?
Parece-me
que estão erradas aquelas pessoas que consideram “raça” e etnia no mesmo
patamar. Uma coisa é a identidade étnica e outra a “raça”, enquanto construção
social que supõe aquelas diferenças físicas ou somáticas que nos interessam.
Por que razão a tonalidade da pele ou o formato do nariz hão-de ser
biologicamente mais importantes que o formato das orelhas ou o tamanho dos
dedos? Mas as “raças” foram socialmente construídas como foram, de modo que
temos de viver com isso. Agora, mesmo que consideremos a existência de várias
raças humanas, não podemos colocar “raça” e etnia no mesmo patamar. Ambas essas
identidades são aprendidas socialmente, mas enquanto a identidade étnica está
presente em nós, com base nos nossos elementos culturais e na nossa vivência, a
verdadeira identidade racial existe apenas naqueles países onde há racismo
institucionalizado. Angola está fora desse grupo, felizmente.
MCK,
um rapper angolano, diz numa das suas músicas que em Angola o ‘mercado de
emprego está colorido’ e que os poucos negros que vê no banco são apenas o
homem que limpa o chão e o segurança. Há algum exagero nisso? Qual é a
realidade actual?
Bem,
eu não vou diariamente a bancos, mas frequento esses locais. Só quem não vai a
bancos pode dizer que a maioria dos funcionários bancários são “brancos”. Isso
não é verdade. Pode até haver uma agência bancária com mais “brancos” que
“negros”, mas isso não é comum por cá. Para quem tiver dúvidas a este respeito,
que vá a agências bancárias lisboetas; se, estando aí e olhando à volta, não
vir diferenças, ou seja, se pensar que está em Luanda, aí então sim, o rapper
terá razão.
Mas
não tem razão, felizmente. Isso é aquilo que eu designo por “conversa de
kandongueiro” – ou seja, é apenas conversa, que não tem expressão na realidade.
Parece o caso de um conhecido jornal da nossa praça, que há alguns anos veio
garantir que nos postos de direcção da Sonangol havia então mais “brancos” que
“negros”. Só depois de o terem afirmado foram contabilizar e viram que era
conversa gratuita. Claro que numa afirmação dessas só pode haver falta de
seriedade. Agora, se houver meia dúzia de “brancos” a trabalhar em bancos, por
que razão isso poderá constituir problema? Se forem angolanos, que problema
haverá nisso? Mas se forem estrangeiros a trabalhar em balcões de agências
bancárias, aí sim, podemos torcer o nariz e notar que alguma coisa não vai bem.
Mas isso não tem a ver com a cor da pele; quando o problema se apresenta em
termos de cor da pele, apresenta-se de forma errada. A questão deve ser
analisada em termos de competências e de postos de trabalho que devem ser
destinados maioritariamente a angolanos (independentemente da cor da pele).
Acredita
que o facto de alguém ter a tez da pele mais clara do que outrem é um
passaporte para um melhor emprego e sucesso na vida?
Depende
de onde se estiver. Se for no Brasil, muito provavelmente sim. Se for nalguns
estados norteamericanos, certamente que sim. Mas se for em Angola, obviamente
que não. Eu atingi o topo da carreira universitária, sou Professor Titular há 3
ou 4 anos. Então quer dizer que eu cheguei a Professor Titular por ser um pouco
mais claro que os meus colegas? Ou por ser um pouco mais claro não deveria lá
ter chegado? Nada disso, a ascensão em qualquer carreira deve fazer-se por
critérios objectivos. A maioria dos Professores Titulares da UAN tem tez mais
escura que a minha e a esmagadora maioria até tem menos investigação e menos
publicações que eu – então por que razão eu não poderia lá chegar? Fixe que o
exemplo da universidade não é excepção à regra. É o comum por cá. E o ensino
superior é um bom sector para olharmos para esse tipo de diferença. Eu já
estive em universidades brasileiras, às quais a maioria (“negros” e índios)
quase não tem acesso. Não é isso que se passa em Angola. Estamos
até muito longe disso. Agora, não digo que não haja em Angola quem discrimina.
Há. E no acesso ao emprego há elevada dose de discriminação, sim. Há sobretudo
discriminação étnica e discriminação sexual, mas também há discriminação
racial. Quando alguém diz, por exemplo, que o gerente de um restaurante deve
ser europeu, está claramente a discriminar. Só que quem faz essa discriminação
não são normalmente “brancos”, são “negros”. É isso que temos de assumir!
Brasil,
que integra a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa, estabeleceu
quotas para o ingresso de negros na universidade. Como é que pensa que a nossa
sociedade reagiria se se adoptasse uma medida idêntica para os brancos em
Angola em relação a determinados sectores, tendo em conta que são uma minoria?
Não,
isso não faria qualquer sentido em Angola. No Brasil sim, faz todo o sentido, porque
(como disse há pouco) existe clara discriminação de “negros” no acesso à
instrução. Em Angola, os “brancos” não têm qualquer dificuldade de acesso ao
que quer que seja, por serem “brancos”. Portanto, as quotas por cá não farão
qualquer sentido, qualquer que seja o sector para o qual olhemos.
Criou
mossa à sociedade angolana uma matéria publicada há vários anos no Semanário
Angolense de que a riqueza em Angola teria mudado de cor. O que achou na
altura? Houve algum exagero dessa publicação?
Terá
realmente criado mossa? Se criou, então quem se sentiu mal vive noutro país que
não o nosso. Claro que, se considerarmos haver “raças” na espécie humana, então
a conclusão só pode ser essa, de a riqueza ter claramente mudado “de cor” com a
proclamação da independência e com a liberalização económica. Se houvesse a
possibilidade de termos acesso aos montantes depositados em bancos e à
fotografia dos titulares das contas bancárias, constataríamos exactamente isso.
Porquê então alguém se sentir ofendido, se a realidade é essa? E não era de
esperar outra realidade, isso é o que está correcto. Mas, felizmente, isso não
foi feito olhando para a cor da pela das pessoas, ocorreu normalmente. Olhe,
recordo-me que dei na altura os parabéns ao meu amigo Graça Campos, pela
profundidade de análise – que foi uma análise puramente sociológica. Sem qualquer
exagero.
Como
sociólogo, o senhor acha que a nossa legislação pune actos que constituem
práticas de racismo?
Não,
que eu saiba, a nossa legislação é praticamente omissa nesta matéria. A questão
da discriminação está presente nalgumas normas, mas não está noutras. Nós temos
grande deficiência em termos de legislação laboral. Diz-se que estamos bem a
este respeito, mas a verdade é diferente. E é preciso mudar rapidamente este
quadro, pois esta é matéria que considero fundamental para a estabilidade e a
harmonia social. Atrevo-me até a dizer que, hoje, fala-se demasiado em racismo,
sobretudo devido a essa lacuna na legislação laboral. Confunde-se discriminação
de outro âmbito com racismo, mas há discriminações várias no acesso ao mercado
de trabalho e esses actos não são punidos como deviam. Aliás, até se o faz
publicamente, com total impunidade. Só mesmo em Angola isso é possível. Também
digo isso no livro.
Como
encara o facto de algumas instituições nacionais e até mesmo estrangeiras
anunciarem nas páginas do Jornal de Angola que pretendem empregar
preferencialmente cidadãos estrangeiros?
Era
mesmo disso que falava. É uma aberração. O que foi que aconteceu às empresas
que têm esse tipo de comportamento anti-angolano? Nada! Fazemos de conta que
não aconteceu nada e, por isso, vão continuar a agir dessa forma, com toda a
desfaçatez. Acha que seria possível sair uma coisa dessas num jornal português,
chinês, russo ou até americano, com total impunidade? Acha mesmo? Isso não era
possível. Mesmo nos Estados Unidos, onde existe nalguns estados racismo
institucionalizado, a identidade nacional fala mais alto. Por cá, não. Passámos
de 8 para 888. Permitimos de tudo. Isso aconteceu durante muito tempo em
empresas petrolíferas. Olhe, até já aconteceu comigo, num episódio que relato
no livro e que não podia tornar público na altura, pois estive algum tempo
contratualmente vinculado à organização para a qual trabalhava na altura e me
demiti por ter sido alvo de discriminação, por ser angolano. É a esses
comportamentos que chamo o “complexo do colonizado”: a colonização já passou,
mas continuamos nós a vergar-nos, como se ainda mantivéssemos essa condição.
Não está certo. Temos de superar isso.
Não
será uma prática de racismo camuflada?
É
difícil chamar a isso racismo, porque quando se diz que “não há nenhum angolano
para assumir tal função”, fala-se de todos os angolanos, independentemente da
cor da pele. As características são similares às do racismo, mas o coordenador
da colecção, o moçambicano Carlos Serra, esclarece no livro que isso é mais
xenofobia. Eu diria que será, sim, xenofobia, mas com um pouco de racismo
tradicional camuflado pelo meio. Aliás, é muito provável que seja mesmo o
racismo que está na base desse tipo de xenofobia. Mas o que é pior em tudo isso
é que, por incrível que pareça, há angolanos (fundamentalmente de pele escura)
que apadrinham esse tipo de xenofobia, contra nós próprios.
O
luso-tropicalismo é ou não uma teoria falida?
Considero
o luso-tropicalismo, não uma teoria, mas uma ideologia. E como ideologia, é
realmente algo falido, algo que caiu em desuso logo à partida. A ideia de que
os portugueses eram o máximo e a colonização portuguesa serviu para “aproximar”
os “negros” dos “brancos” é coisa que não colhe. Posso ser acusado de estar a
simplificar a análise, mas penso estar a fazê-lo bem. Até porque uma das muitas
coisas esquecidas pelos adeptos do luso-tropicalismo é que a colonização
(qualquer que ela seja) nunca é benéfica, pois traz consigo imposições várias.
Passar paninhos quentes por aí não resolve, não altera nem atenua o que quer
que seja.
A
terminar, gostaria que falasse na questão dos mestiços.
Esta
é realmente uma questão importante, que não deve ser ignorada. A mestiçagem é o
futuro da Humanidade. Vamos lá tentar desmistificar a questão dos mestiços.
Biologicamente falando, o que é o nosso mestiço? O nosso mestiço, resultado do
cruzamento entre “negros” e “brancos”, é biologicamente “negro”. Se olharmos
para as características somáticas do mestiço (que se têm em conta quando se
consideram raças na espécie humana), só podemos concluir que o mestiço é
“negro”. O mestiço não tem as características fisionómicas do “branco”, tem as
características fisionómicas do “negro”.
A
tonalidade da pele, para a qual se olha em primeiro lugar, é apenas um dos
elementos, e até o menos importante – pois eu posso escurecer ou clarear a
minha pele de um dia para outro, se o pretender. E sem ter de recorrer a
cirurgia. Além dos traços característicos da suposta “raça” negra, o mestiço
possui também as doenças características da “raça” negra. Biologicamente
falando, o mestiço é negro e ponto final.
Sociologicamente
falando, o que eu penso é que devemos deixar de olhar para o mestiço como
“acidente de percurso”, para olharmos para a mestiçagem como o futuro da Humanidade.
Vistas as coisas em termos raciais, o que posso dizer é que, nas cidades
angolanas, a maioria somos mesmo mestiços, podemos crer. Não é uma questão de
cor de pele, é preciso olharmos para as características somáticas como um todo
e para as árvores genealógicas de cada um, e aí vamos verificar que tenho
razão.
Qual
será o seu próximo livro?
Essa
é uma pergunta à qual não consigo responder taxativamente, porque tenho 3
livros começados em diferentes etapas da minha vida. Se calhar, vou concluir
primeiro o último deles, para em 2015 tratar de concluir os livros acerca do
ensino superior em Angola e acerca da delinquência e criminalidade em Luanda. Fiz , no ano
passado, com um colega polaco de nome Jaroslaw Jura, um estudo acerca da
percepção que os angolanos têm da China e dos chineses. O estudo produziu
resultados interessantes, que constam de um artigo que vai ser publicado em
duas revistas científicas (de Luanda e Varsóvia) e que constam de um livro em
inglês que foi produzido sob direcção do Jaroslaw Jura. Acerca do livro em
português, que é de minha responsabilidade, tenho já meio livro escrito, com a
contribuição também do meu colega. Penso concluí-lo ainda este ano, para chegar
ao público leitor em 2015.