RACISMO E XENOFOBIA
'Aqui
há preconceito contra médicos brasileiros como tínhamos contra bolivianos no
Brasil'
A
patologista Fernanda Amary, de 43 anos, saiu de São Paulo em 2010 e passou a
trabalhar Royal National Orthopaedic Hospital, em Londres. O hospital,
que faz parte da rede de saúde pública britânica (NHS), é o maior centro de
tratamento ortopédico no Reino Unido.
Em
depoimento à repórter Mariana Schreiber, da BBC Brasil, ela conta sobre as
dificuldades para ser contratada e conquistar o respeito dos colegas e também
sobre as diferenças entre o trabalho no Brasil e no Reino Unido.
Ela
é uma dos 97 mil médicos que atuam no país cuja formação foi obtida no exterior
- o que representa 36% do total de 267,5 mil profissionais registrados para
atuar no Reino Unido. A maioria desses profissionais vêm de ex-colônias
britânicas como Índia, Paquistão e Nigéria.
Leia
o relato de Fernanda Amary à BBC Brasil:
"Eu
fui convidada para trabalhar no Royal National Orthopaedic Hospital após ter
feito parte da minha pesquisa de doutorado aqui entre 2005 e 2006. Eu sou
patologista especializada em um tipo raro de câncer que ataca ossos e tecidos
moles: os sarcomas.
Como
eu já tinha 12 anos de experiência no Brasil, achei pela lógica que o caminho
mais fácil seria requerer registro diretamente na minha especialidade, em vez
de fazer as provas básicas para validação do diploma de médico. No entanto,
todo o processo de apresentação de documentos e registros que comprovassem
minhas qualificações e experiência prévia no Brasil levou três anos. Se
soubesse que seria tão complicado, não teria feito. Tive que fazer um relatório
de todos os casos que acompanhei nos últimos cinco anos, traduzir meus títulos,
diplomas e laudos anônimos de patologia. Precisei submeter o pedido duas vezes,
pois pediram mais detalhes.
Quando
meu registro foi aprovado, em 2009, o hospital teve que anunciar a vaga por um
mês, para o caso de algum cidadão da União Europeia se interessar. No entanto,
o cargo exigia uma especialização muito específica e não houve outros
candidatos.
Comecei
a trabalhar em março de 2010 com uma equipe de outros médicos. Todos os
cirurgiões e quase todos os oncologistas e radiologistas são britânicos. Na
minha equipe de quatro patologistas, porém, somos todos estrangeiros. Além de
mim, há um italiano, um sul-africano e uma irlandesa.
Preconceito
e organização
Não
sofri preconceito frontal por ser brasileira, mas eu sinto que existe, assim
como existe no Brasil em relação a médicos chilenos ou bolivianos, por exemplo.
Nós pensávamos: "eles nem sabem falar português”.
Eu
falo bem inglês, mas nunca é como uma primeira língua. Às vezes, é difícil
quando você quer argumentar muito na discussão de um caso.
Eu
trabalhava há muitos anos na Santa Casa de São Paulo. Eu saí de um lugar onde
todo mundo me conhecia e me respeitava como profissional para um lugar onde
ninguém me conhecia. Então, demorou mais de um ano para que os colegas
começassem a me ligar para pedir opinião sobre os casos.
Sinto
muita falta do povo brasileiro e quero voltar em breve para aplicar o que
aprendi aqui. No Brasil, os médicos são muito bons. A grande diferença entre os
sistemas de saúde britânico e brasileiro é a organização.
No
hospital em que trabalho, toda semana fazemos uma reunião multidisciplinar para
discutir os casos conjuntamente em uma videoconferência também com a equipe do
hospital da University College London. Participam do encontro seis
oncologistas, quatro cirurgiões, três patologistas, de dois a seis
radiologistas, três enfermeiras e duas coordenadoras de reunião
multidisciplinar, que organizam os dados dos pacientes e exibem as informações
em data show.
Nesse
encontro, temos um prazo de 31 dias para avaliar casos encaminhados pelo médico
de cada paciente (o general practitioner, GP, que é uma espécie de clinico
geral). Nós descartamos ou confirmamos a suspeita de câncer e decidimos que
exames ou procedimentos adicionais devem ser feitos. Há então um prazo de mais
31 dias para operar o paciente se necessário e iniciar outros tratamentos como
radioterapia e quimioterapia.
No
Brasil, fazíamos encontros para discutir apenas os casos mais graves e isso
dependia da iniciativa dos médicos. Aqui, é uma regra e eu tenho que estar
presente em 75% dos encontros. As regras são mais claras e são monitoradas.
Isso precisa ser feito no Brasil: organizar e acompanhar melhor o caminho do
paciente dentro do sistema de saúde.
É
uma questão mais administrativa do que médica. Talvez seja necessário atrair
administradores motivados para gerenciar esta organização. É de uma
complexidade imensa. Mesmo aqui as coisas não foram organizadas da noite para o
dia, muita coisa mudou nos últimos 20 anos. O Brasil é um país do tamanho de
toda a Europa, com muitas diferenças regionais. O tamanho e as distâncias já
constituem um grande obstáculo para a centralização do atendimento em centros
de especialidade.
Sistema
público
Aqui,
mesmo quem tem alto poder aquisitivo geralmente não tem plano de saúde. Mas,
apesar do NHS ser mais eficiente que o SUS, ele também não é perfeito. A pessoa
se registra com um general practitioner (GP) em um local de atendimento do NHS
da região onde mora. O GP faz o atendimento inicial e decide se deve ou não
encaminhar o paciente para um médico especialista. Se não for grave, a pessoa
não é encaminhada adiante.
Então,
há uma cultura de só ir ao médico se a pessoa considera que seu caso é grave,
evitando assim tomar o lugar de alguém que precise mais. Por exemplo, um colega
com quem jogo tênis estava com dor no joelho um dia e me disse que não iria ao
médico porque sabia que não seria encaminhado para o especialista.
O
problema é que muitas vezes isso causa atrasos no diagnóstico. Eu vejo aqui
tumores tão grandes como no Brasil, o que me surpreendeu.
Agora
estou trabalhando também no desenvolvimento de um aplicativo para tablets e
smartphones para que possamos compartilhar com outros médicos e estudantes de
Medicina os casos que tratamos aqui, que são raros. Eu ganhei 100 mil libras
(R$ 390 mil) para isso em uma seleção do hospital.
Aqui,
temos mais tempo dedicado à pesquisa. Em 2011, minha equipe também recebeu o
prêmio de excelência em pesquisa de patologia Jeremy Jass por ter identificado
uma mutação genética que está presente em metade dos condrossarcomas – o
segundo tipo mais comum de câncer de osso. A descoberta é muito importante para
o desenvolvimento de novos remédios."
BBC
Brasil
*Título PG
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